Da pele à prótese
Somos prisioneiros de presenças ausentes?
Por Alexandre Honrado
Numa pesquisa de respostas para as múltiplas interrogações motivadas pelo tempo presente, procurando ainda a aliança de conceitos que sempre me motivaram, trago ao mesmo texto o cruzamento entre pele e prótese, memória (e memória-protética) e presença ausente (a sensação descrita em trabalhos médicos, também designada como sensação do membro-fantasma e que se refere à “amputação de algum membro, lesão de plexo braquial ou até mesmo em pacientes tetraplégicos“ em sujeitos que diziam “sentir sensações da presença do membro perdido ou inativo”, muito depois da separação e inexistência do mesmo).
Vamos por partes até ao encadeamento. O desafio aqui é aplicar um raciocínio estritamente do cultural sobre matérias que parecem médicas, ou da comunicação, ou da sociologia e que todavia se entretecem.
Leio em apontamentos antigos que foi em Toronto, Canadá, que nasceu “uma nova teoria da comunicação na estruturação das culturas e da mente humana”, sem dúvida referindo esta afirmação os trabalhos de Harold Innis, Eric Havelock e sobretudo os de Marshall McLhuan que em 1962 iria publicar um livro capaz de estremecer o intelecto dos mais atentos, A Galáxia de Gutemberg, livro que passou a ser um dos pontos de encontro dos intelectuais do mundo e da tentativa de compreensão dos efeitos da comunicação na forma como regimentamos as nossas atitudes e opiniões na relação direta com os meios de comunicação de massas mas sobretudo com as propostas sociais que insistimos em criar como alternativas aos mesmos – e, eventualmente, a nós mesmos.
Nos tempos de hoje, assistimos à vertiginosa reconfiguração da Galáxia, face aos novos meios de comunicação e à forma como cada indivíduo se tornou uma “prótese” no coletivo comunicacional: fotografamos, filmamos, gravamos, emitimos, informamos, criamos socialmente espaços sociais de novas realidades e dinamizamos universos culturais de todos os formatos e tamanhos, capacitando o outro com a nossa mensagem, que pode ser incerta mas que se prefigura como uma forma comunicacional que traduz as novas fórmulas comunicacionais.
Para trás de todos nós ficou a inovação e a provocação de Marshall McLhuan, para reconhecer a seguir a dinâmica exemplar do seu herdeiro intelectual, Derrick de Kerchkhove, que depois da morte de McLhuan, recebeu a responsabilidade de direção do Programa McLhuan em Cultura e Tecnologia da Universidade de Toronto, o principal instituto de estudos mediáticos do mundo, cuja primeira prioridade foi o estudo da visão de MacLhuan sobre os meios de comunicação eletrónicos.
Derrick – que dirigiu aquele programa de 1983 a 2008 – é um homem que viaja constantemente – ou viajava até à nova realidade do mundo em 2020, o que lhe granjeou a fama de ser, por excelência, um aldeão global, aquele que faz de todos os pontos do mundo – os pontos da emanação do local – a sua realidade física. Outra das nomeações que lhe conferem é a de ser o “profeta canadiano dos meios de comunicação”, contribuindo para uma ideia que hoje percorre os estudos de cultura de formas diversas mas afinal convergentes: há uma memória protésica, uma memória-prótese que regista a extensão do nosso sistema nervoso, do nosso corpo, também da psicologia humana.
Derrick defende que são os meios eletrónicos essas extensões – que diríamos, essas próteses, essas substituições de uma presença ausente que desejamos tanto colmatar, não tanto como uma solução para a saudade – como nos poemas de Teixeira de Pascoais – mas como repositório do que de nós anda perdido. O seu livro mais famoso chama-se, não por acaso, A Pele da Cultura. Nele, Derrick de Kerchkhove pretende ver a televisão como “um órgão coletivo de teledemocracia que utiliza os estudos de mercado e sondagens para examinar, como um raio-X, o corpo social”.
Mas esse é apenas um ponto de vista. Cada vez menos a televisão é o órgão essencial da comunicação. Deixou de ser a composição de uma democracia funcional – a telecracia. No entanto, há 25 anos, quando publicou o livro, Derrick de Kerchkhove avisava que a mesma televisão podia vir a cair nas mãos dos populistas. A pele da cultura seria tatuada pelos que melhor manipulassem os meios. Primeiro pela fabricação de memórias – uma construção social da realidade que nos convence que o passado é como é descrito pelos produtos que o comunicam -, depois pela fabricação de extensões de memória para solidificar essa construção – uma memória protética, aparentemente funcional, prolongamento das nossas predisposições e facilitismos -, depois como presença virtual que absorvemos como real (uma presença ausente que contudo sentimos como efeito e recurso quotidiano). As tecnologias, sobretudo as da linguagem e da escrita, são o resultado do que as suas antecedentes engoliram (a televisão engoliu o cinema, o computador engoliu a televisão, o telemóvel engoliu o computador…) numa sucessão de festins canibais em que acreditamos ser o convidado de honra.
Somos aquilo em que acreditamos. E as nossas crenças são cada vez mais débeis. Da pele à prótese, somos prisioneiros de presenças ausentes? É isso que nos torna presas fáceis das mentiras populistas, que substituem a história por novas memórias, dotando-nos de perigosíssimas próteses que aceitamos sem pudor?
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